Política do branqueamento: o apagamento de um povo

Embora o Brasil tenha uma população miscigenada e passe uma imagem social de tolerância e acolhimento, o preconceito racial e a discriminação contra os negros ainda existem em todo o país. Além dessas situações, o racismo no Brasil é um fenômeno estrutural da sociedade. Esse fato fica claro quando analisamos alguns números que demonstram o abismo entre negros e não negros na sociedade brasileira e afastam o país da democracia racial. A análise da formação social brasileira com base na história pode fornecer uma resposta a essa situação. Não há dúvida de que uma das causas do racismo estrutural no Brasil é a exploração da mão de obra de africanos escravizados e seus descendentes ao longo dos séculos.

No Brasil, a escravidão foi superada por meio de um processo de abolição que não buscou estabelecer projetos de inserção social e econômica na nova ordem criada a partir de 1888. Um dos principais motivos para o abandono dos negros após a superação da escravidão foi o ideário racista que prevaleceu do final do século XIX até as primeiras décadas do século XX. Com base na ideologia eugenista trazida da Europa, o branqueamento da população brasileira foi implementado por representantes tanto da monarquia como da República. No Congresso Universal das Raças, realizada em Londres em 1911, João Batista de Lacerda, diretor do Museu Nacional durante o governo Hermes da Fonseca (1910-1914), apresentou o artigo “Sobre os mestiços no Brasil”. De acordo com as visões dos maiores entusiastas dessa tese, em cerca de um século, os negros já teriam desaparecido do Brasil, enquanto os brancos seriam a maioria da população. E no Congresso ela recebeu elogios pela forma pacífica com que resolveriam seu “problema dos negros”.

A pseudociência da eugenia apresentava uma solução atrativa para nomes como Monteiro Lobato, Júlio de Mesquita, dono do jornal O Estado de S. Paulo; Oliveira Vianna, jurista e sociólogo, considerado "imortal" pela Academia Brasileira de Letras; e o fundador da Faculdade de Medicina em São Paulo, Arnaldo Vieira de Carvalho. De acordo com o pensamento eugenista, o conceito de “evolução das espécies” de Charles Darwin, também se aplicava aos seres humanos, e explicava o progresso dos europeus até o topo da pirâmide hierárquica entre raças. Além de justificar a dominação colonial e a exclusão social do negro, indígena e qualquer “outro” que não fosse europeu, considerado uma “raça pura”. Em regra, os intelectuais brasileiros assimilavam essas ideias sem contestação e expressaram preocupação com o desenvolvimento do Brasil, uma vez que o país era maioritariamente formado por uma população não branca – negros, indígenas e mestiços. Acreditar nas teorias racistas, formuladas na Europa e nos Estados Unidos, era conveniente para a elite brasileira pois, mesmo após o fim da escravidão, seria possível legitimar e naturalizar a hierarquia social existente no Brasil.

Na fase de modernização capitalista dominada pela industrialização e urbanização nacional, a teoria do embranquecimento não foi desprezada. Isso porque à população não branca foram reservadas as regiões periféricas, abandonadas, sem infraestrutura e serviços públicos decentes. A população não branca, praticamente ignorada do sistema de educação e de formação profissional, permaneceu exposta à forte concorrência no interior do mercado geral de trabalho. Distante das relações formais de trabalho, especialmente ocupadas pela parcela branca, coube à população não branca as ocupações sem direitos sociais e trabalhistas, ocupações secundárias instáveis e o desemprego. Por causa da mentalidade da época, os estrangeiros ocupavam os espaços mais dinâmicos da economia, como indústria e comércio, enquanto os cidadãos pobres, principalmente os negros, restavam serviços intermitentes, de salários baixos e considerados de menor status. Devido aos dados do censo de 1872, é sabido que os negros escravos exerciam diversas ocupações que exigiam um alto nível de responsabilidade e preparo técnico. Portanto, o argumento de que os negros não tinham a formação necessária para competir com os imigrantes é insustentável. Podemos concluir que a marginalização dos negros no período pós-abolição não foi apenas produto dos ex-escravos não preparados para se adequarem ao mercado de trabalho que se estruturou no pós-abolição, nem foi resultado da incompetência ou negligência por parte das elites políticas e econômicas em relação a essas massas. Na verdade, essa marginalização é resultado do pensamento eugenista e resultado de políticas sustentadas por teorias pseudocientíficas que tinha como objetivo promover a extinção dos negros do Brasil

A óbvia ideologia racista das teses de branqueamento foi superada, principalmente a partir da década de 1930, quando surgiu um novo modelo, que tentava descrever o Brasil como um país racialmente democrático, um lugar onde vivia-se a democracia racial. Um livro clássico que sintetiza essa mudança de paradigma é o livro ‘Casa Grande e Senzala’, de Gilberto Freyre, publicado em 1933. Por outro lado, a disseminação da ideia de democracia racial foi prejudicial à população negra pois deu continuidade à noção de que não havia necessidade de se considerar políticas efetivas de superação das desigualdades raciais existentes no Brasil, ignorando séculos de cativeiro e as décadas nas quais as teses de branqueamento estiveram ativas, produzindo a marginalização econômica e social da população negra, além da construção de uma mentalidade racista que existe até os dias de hoje.  Pois criou-se uma percepção de que a miscigenação e a e a diversidade racial deste país mostram que não temos preconceito que, pelo contrário, somos pessoas que exalam diversidade.

A eugenia justificou, entre outras políticas, o incentivo à imigração europeia por parte das elites econômicas e do próprio Estado, enquanto, ao mesmo tempo, defendia a visão de que os não-brancos, principalmente os negros, representavam um fator de atraso para a nação brasileira e, portanto, não era interessante promover sua integração. Podemos afirmar que o abandono das populações libertas da escravidão, bem como de seus descendentes foram uma ferramenta do projeto de branqueamento no Brasil, pois através desse abandono, estimava-se que o país iria se livrar dos negros. Como resultado, a população não branca sofre com o desemprego, das mortes pela pandemia, do esgotamento da educação. Entre os desempregados ou subempregados, os negros constituem a maioria, e as vítimas de homicídio também constituem a maioria, representando quase dois terços da população carcerária do país. Populações periféricas que vivem e trabalham em condições precárias deixam suas casas para garantir sua subsistência e usam transporte público inadequado. Depois de atingir a condição de maioria no ensino superior público brasileiro pela primeira vez, os alunos não brancos começaram a voltar no tempo e perderam suas vagas na universidade. Nos poderes executivo, legislativo e judiciário da República, os brancos continuam a ser a maioria.

O racismo se expressa concretamente como desigualdade política, econômica e jurídica. - Silvio Luiz de Almeida.

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