Mulata, mercado negro, criado-mudo: o racismo na língua portuguesa

O dia da Consciência Negra, 20 de novembro, é um marco na luta pela integração de pretos na sociedade. Embora a escravidão tenha sido abolida há 132 anos atrás, o racismo estrutural ainda permeia as estruturas sociais, nas ações, relações interpessoais e instituições, assim como na fala e escrita. Por mais inofensiva que pareça ser, palavras e expressões do cotidiano podem reproduzir discursos preconceituosos, mesmo quando não são usadas com esta função, pois o valor histórico ainda possui relevância. Portanto, não só alterar as suas ações discriminatórias, é importante ter consciência de que a luta pela igualdade social também ocorre pela mudança nos hábitos do discurso.

Ficheiro:Um mascate e seu escravo, 1822.jpg – Wikipédia, a ...
A língua portuguesa no Brasil foi moldada sob influências do período da escravidão e expressões nascidas com um cunho racistas foram mantidas até hoje, junto com a  desigualdade social do povo preto. As [expressões] que ouço com muita frequência e que são manifestações racistas mascaradas de elogios são “negra bonita” e “cabelo exótico”, falou Ana Franco, jornalista do Ajunta Preta - Coletivo Feminista de Mulheres Negras do Estado do Tocantins. Ainda que boas intenções por trás da fala, cada palavra conta a história e a cultura de uma sociedade, ampliando a violência. Quando termos preconceituosos disfarçados de características se tornam naturais, é indício do quanto a opressão e a discriminação estão anexos à visão de mundo das pessoas. Essas palavras existem há séculos e mostram o real perfil da população brasileira, de uma sociedade racista. Dessa forma, é importante moldar seu vocabulário para não reproduzir discursos racistas, pois o racismo se manifesta principalmente pela manifestação, e essa disseminação encontra outros meios para violentar o povo preto.

ORIGEM DE ALGUMAS EXPRESSÕES
Entenda o significado das palavras abaixo, para que seja possível criar uma sociedade mais igualitária, sem racismo e preconceito.

"Denegrir"
No dicionário Aurélio o significado de denegrir é tornar negro. Entretanto, no cotidiano é utilizado como sinônimo de difamar, sujando o que antes era "limpo", desse modo, associa ser negro a algo ruim/ofensivo. Você pode substituí-la por sinônimos como difamar ou caluniar.

"Morena/mulata"
Racistas acreditam que chamar alguém de negro é ofensivo. Falar ambas as palavras são formas de embranquecer a mulher preta, de não assumir a verdadeira cor de pele, preta, que é considerado indigna e vergonhoso, e, assim, diminuiria o “incômodo”. O substantivo mulata, na cultura espanhola, vem de mula, animal gerado do cruzamento do jumento com a égua, fazendo referencia ao filho(a) bastardo(a) resultantes de abusos, na época da escravidão, do homem branco, geralmente senhores do engenho, com a negra escrava. Hoje é usada com a ideia de sensualidade ligada a mulher negra. Além disso, um derivado com uma carga mais pejorativa é “mulata tipo exportação”, que reafirma a visão da mulher negra e seu corpo como mercadoria.

“Inveja branca”
Seria uma inveja do bem/boa, que não faz/deseja mal, associando a cor branca a algo bom, positivo, que não machuca, ao contrário do negro, que seria negativo.

“Não sou tuas negas”
A mulher negra seria qualquer uma, de todo mundo, ou uma mulher fácil, demonstrando como a sociedade ver a mulher preta, como alguém que se pode fazer de tudo, assim como as escravas. As escravas pretas eram propriedade dos homens brancos e utilizadas para satisfazer desejos sexuais, sofrendo assédios e estupros. Já as mulheres brancas possuíam um tratamento diferente, pois não eram “alguém que faz de tudo”, diferenciando-as das mulheres pretas, que na cultura popular o homem branco podia fazer o que quisesse pois ele era dono dessas mulheres.

“A coisa tá preta”
Associa a palavra preto a uma situação ruim, complicada, desconfortável, desagradável, difícil e perigosa, porque nada que é preto pode ser bom.

"Lista negra, ovelha negra, mercado negro, etc"
A lista ruim, a pessoa ruim e o mercado paralelo, ilegal. Há uma série de expressões em que a palavra negra/negro representa algo pejorativo, ruim, prejudicial, proibido e muitas vezes algo ilegal, as citadas são apenas alguns dos exemplos.

“Meia tigela”
Usada para referir-se a algo sem valor ou medíocre. A expressão surgiu há muito tempo, na época da escravidão e do ciclo do ouro, quem não tinha um "trabalho digno" ou não alcançava a sua meta na extração de outros, como os criados, ganhava como punição só meia tigela de comida.

“Preto de alma branca”
Seria "elogio" a um preto, dizendo que ele é uma pessoa boa chamando de “preto de alma branca”, porque ele é “diferenciado” e tem o comportamento de uma pessoa branca não de uma pessoa preta. 

“Criado-mudo”
O termo usado para nomear a mesa de cabeceira, móvel que fica ao lado da cama. O termo surgiu surgiu de uma dos papéis que os escravos[criados] eram obrigados a fazer para os senhores: segurar objetos. Eles eram chamados de mudos por serem proibidos de falar, conversar ou fazer qualquer barulho que pudesse atrapalhar.

“Cor de pele”
Geralmente aprende-se desde criança que no conjunto de lápis “cor de pele“ é o tom meio rosado ou bege, no entanto, o tom não representa a pele de toda a população, principalmente no Brasil onde de acordo com o IBGE, 53% dos brasileiros se declararam pardos ou negros, e não deve ser usado como definição da cor da pele. Porém, vemos que essa denominação está tomando outro significado nos últimos anos, visto que marcas como Faber Castell, muito popular na compra de material escolar, estão adotando a criação de diferentes cores para tons de pele.

“Boçal”
Seria o mesmo que chamar alguém de ignorante, com falta de conhecimento. Era usado para fala sobre o escravo recém-chegado ao Brasil, que não sabia falar a língua portuguesa.

“Doméstica”
Esse termo é usado para falar sobre uma auxiliar de serviços gerais e vem do termo "domesticar", como se a pessoa precisasse ser "domesticada" para deixar se ser um animal. Surgiu em meados do século XVI, quando brancos nomearam as mulheres negras escravizadas que trabalhavam dentro das casas das famílias brancas e já eram consideradas “domesticadas”, ou seja, já passaram pela tortura, pois os pretos eram tratados como animais e só a tortura mudaria isso. 

“Cabelo ruim”
Expressão usada para se referir ao cabelo afro, outros uso que depreciam o cabelo crespo são fios “rebeldes”, “cabelo duro”, “carapinha”, “mafuá”, “piaçava” por exemplo. Por vários séculos, essas frases causaram a negação do próprio corpo e a baixa autoestima entre as mulheres pretas sem o cabelo liso, que recorreram e ainda recorrem a processos químicos para mudar o aspecto do cabelo.

“Serviço de preto”
Remete a um serviço mal feito, realizado de maneira errada, associando ao trabalho feito pelos pretos, sendo “preto” a representação de algo ruim, tentando desqualificar o trabalho e a competência de pessoas pretas. 

“Inhaca”
Inhaca é comumente utilizado para falar do odor corporal. Porém, Inhaca é uma Ilha de Maputo, em Moçambique, onde vivem os povos Nhacas, um povo Bantu, relacionando o odor a um povo preto. 

“Ter um pé na cozinha”
Essa é uma forma de falar de uma pessoa preta, pois lembra o período da escravidão no qual as mulheres pretas só eram permitidas na cozinha da Casa Grande, sendo proibida a circulação delas por outros cômodos. Dessa forma, a expressão surgiu da privação da liberdade e da segregação de escravas.

"Da cor do pecado"
Apesar de subliminar, pecar é considerado um erro, algo ruim na nossa cultura e a expressão é usada equivocadamente como elogio. Entretanto, propaga a ideia da época da escravidão de um corpo preto sexualizado, pois era com as escravas que os Senhores de Engenho se divertiam na cama, dando a ideia de que mulher preta serve apenas como passatempo. Além disso, atribui essa cor de pele a algo pecaminoso, pois ser preto era pecaminoso. A escravidão era justificada pela Igreja Católica como um castigo divino.

“Feito nas coxas”
Antigamente as telhas das casas eram moldadas em coxas de escravizados, por eles terem corpos diferentes, as telhas ficavam com formatos diversos e, por isso, estariam mal feitas.

“Amanhã é dia de branco”
Expressão utilizada para remeter a um dia de muito trabalho, responsabilidades e compromissos, trazendo uma visão de que só pessoas brancas trabalham duro. Isso porque, antigamente o trabalho dos escravos não era considerado um trabalho de fato e isso é perpetuado até hoje.

“A dar com pau”
Significa quantidade. Tem origem nos navios negreiros, alguns negros faziam greve de fome ao serem capturados, pois preferiam morrer a serem escravizados, e para não morrerem, uma colher de pau era enfiada em suas bocas com comida obrigando-os a se alimentar. Expressão originada nos navios negreiros.

“Samba do crioulo doido”
Título do samba que satirizava o ensino de História do Brasil nas escolas do país nos tempos da ditadura, composto por Sérgio Porto, conhecido por Stanislaw Ponte Preta, na época da Ditadura. A expressão é usada para se remeter a uma confusão, estardalhaço, bagunça, alvoroço, desordem ou trapalhada, reafirmando, assim, um estereótipo e discriminando os pretos.

“Negro(a) de traços finos/Beleza exótica”
São “elogios“ que possuem uma intenção de clareamento por trás, tratando o que está fora da estética branca e europeia como incomum.

“Estampa étnica”
Dá a noção de que estampa é apenas aquela criada pelo olhar eurocêntrico, exaltando a cultura europeia. Quando o desenho vem da África ou de outra parte do mundo, que são consideradas “exóticas”, torna-se uma “ estampa étnica”.

A língua fala por si. A importância de tratar da língua seja através dos museus, dos programas, dos acordos ortográficos, seja através dos processos de liberalização das falas novas, a língua é importante. A língua é nossa mãe. - Gilberto Gil

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