Auxílio Brasil não é um novo Bolsa Família: é um desmonte

No Bolsa Família, existe um pagamento básico para famílias na extrema pobreza, ou seja, que têm renda de até R$ 89 por pessoa. Elas recebem o crédito também de R$ 89. É possível somar a isso os benefícios variados: de R$ 41 por cada criança, adolescente de até 15 anos, gestantes ou nutrizes, com limite máximo de cinco beneficiários por casa; ou de R$ 48 para jovens de 16 e 17 anos, com limite de dois pagamentos por família. Caso, mesmo recebendo esses pagamentos, a família não atinja a renda de R$ 89 por pessoa, tem direito a um complemento para sair da faixa da extrema pobreza. Já os grupos familiares considerados pobres, que têm renda entre R$ 89 e R$ 178 por membro, recebem apenas os benefícios variados, sem o pagamento básico.


Em 9 de agosto de 2021, a Medida Provisória (MP) 1.061 estabeleceu o Programa Auxílio Brasil e anunciou o fim do Bolsa Família. No Bolsa Família, famílias extremamente pobres (ou seja, famílias com renda não superior a 89 reais por pessoa) recebem subsídios básicos. Recem também um crédito de 89 reais, além de diversos benefícios: cada criança, adolescente menor de 15 anos, gestante ou lactante recebe 41 reais, com limite máximo em cada família de 5 beneficiários; ou 48 reais para jovens de 16 e 17 anos, com no máximo dois pagamentos por família. Se a renda per capita da família não chega a 89 reais mesmo após o recebimento desses pagamentos, ela tem direito a um subsídio para escapar da pobreza extrema. Por outro lado, no grupo familiar considerado pobre, com a renda de cada integrante entre 89 e 178 reais, e eles só recebem os diversos benefícios, sem o pagamento básico. Auxílio Brasil é um novo projeto social que substitui o Bolsa Família e visa aumentar o valor dos pagamentos e a base de beneficiários. No entanto, esses números ainda não foram definidos. O que se sabe até agora é que a reformulação inclui três modalidades de crédito.

Além do pagamento básico do novo projeto social, há seis bônus que podem ser acumulados, como a bolsa iniciação científica júnior, que é paga em 12x aos alunos com bom desempenho em competições acadêmicas e científicas; auxílio esporte escolar, aplicável a alunos de 12 a 17 anos que se destacam em competições escolares no Brasil; e auxílio criança cidadã, caso os menores de 2 anos não consigam vaga nas creches públicas ou privadas da rede parceira; auxílio inclusão produtiva rural, 36 meses para agricultores familiares cadastrados no Cadastro Único; auxílio inclusão produtiva urbana, aplicável a pessoas que possuem vínculo empregatício formal e estejam na folha de pagamento do Auxílio Brasil; benefício compensatório de transição, aplicáveis ​​a famílias cadastradas no Bolsa Família, que perderam parte de seu salário após a transição para a nova forma.  Entretanto, associar o novo Bolsa Família à excelência, tanto esportiva quanto acadêmica, tira o foco do combate à pobreza e faz com que o programa tenha o seu impacto reduzido. Nesses critérios, seriam poucas pessoas atendidas e, ainda assim, seriam as que menos. Dessa forma, o Auxílio Brasil ajudaria quem precisa menos, pagando altos valores, e destinaria aos mais vulneráveis os menores valores. Podemos discutir a estimulação do desempenho escolar ou esportivo? Certamente. Mas sem tirar os escassos recursos dedicados a ajudar as pessoas de baixa renda. A política de transferência de renda deve beneficiar as pessoas a se retirarem do programa. Portanto, incentivos condicionais para os resultados significam subversão da ordem.

Ademais, segundo analistas, a confusão, a falta de coordenação e o comprometimento do governo em tentar implementar o novo plano a todo custo pesou para as instituições financeiras, que decidiram retirar recursos de ativos brasileiros na terça-feira. Não há uma estratégia clara de combate à pobreza, exacerbados pela pandemia, os dados e critérios técnicos que nortearam a formação do Bolsa Família em 2003, no governo Lula, com base nos programas do governo Fernando Henrique Cardoso. Além da falta de evidências sobre a eficácia do novo plano, o impacto fiscal também é incerto. A preocupação do presidente Jair Bolsonaro com o valor do novo benefício (mais do que o dobro da média atual do Bolsa Família, 189 reais) deixou espaços no redesenho do plano e a incerteza das fontes de financiamento. O problema não é que a expansão do plano exceda o limite superior - para algumas pessoas, o financiamento do Bolsa Família mais amplo fora do limite fiscal em um momento de fragilidade social pode até ser discutível. A preocupação é que esse movimento mostra que o governo carece de compromisso com qualquer controle de despesas e é difícil saber qual será o próximo aumento nas despesas. A solução do governo é conceder 400 reais em benefícios, que serão temporários, válido somente para 2022, previa que parte dos 85 bilhões de reais necessários ultrapasse o teto de gastos do país. Para analistas, a medida vai destruir a credibilidade remanescente do governo na esfera fiscal. Romper o teto colocará mais pressão sobre a inflação, que já passa dos 10% ao ano, e forçará o banco central a apertar a política monetária para conter os aumentos de preços, restringindo assim a atividade econômica de uma vez por todas. Além de fazer com que a bolsa de valores caia e o dólar americano dispare, as ações do governo também provocaram elevação das taxas de juros do mercado, o que teve um efeito adverso na economia.

O impacto associado a esse fato não se limita a experimentos em torno do valor da transferência de dinheiro às famílias atendidas pelo novo programa. O Auxílio Brasil tem como objetivo reduzir custos sociais e é uma síntese dos esforços pelo colapso da rede de proteção social brasileira. Diversos são os exemplos de esforços empreendidos desde o início de 2019 para que isso fosse possível — os mais marcantes são a desativação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), o desincentivo dos programas de cultivo de mantimentos pela agricultura familiar e o desmanche do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico). Com a ajuda do Auxílio Brasil, isso se concretiza uma vez que os referidos programas foram transformados em ferramentas técnicas para a gestão e fiscalização das famílias assistidas. A cadeia de ação que articula as políticas públicas sociais foi rompida e a responsabilidade do Estado foi deslocada para "incentivar o esforço individual". Resumir a discussão sobre programas sociais à transferência de dinheiro para as famílias dos trabalhadores é esquecer que o Brasil saiu do mapa da fome em 2014, e que só houve a existência de alguma expectativa de mobilidade social por causa da articulação de programas que sustentavam a rede de proteção social brasileira, relacionada com políticas sociais consistentes, como a valorização do salário mínimo e a geração de empregos formais.

O Bolsa Família só atingiu o sucesso, como todos sabemos, porque esteve apoiado em a uma série de ações que o apoiavam no objetivo de reduzir da pobreza e da pobreza extrema. Auxílio Brasil representa a mudança repentina e violenta na visão social de agora e dos próximos anos. Os resultados já são evidentes nas filas que compõem o "garimpo dos ossos" nas entradas de supermercados e açougues, no aumento de furtos famélicos e nos despejos de famílias inteiras de trabalhadores, jogadas para viver nas ruas. No Bolsa Família, fatores como frequência escolar de crianças e adolescentes, vacinação e acompanhamento nutricional pelo SUS eram condicionantes para o recebimento do benefício. Caso a família deixasse de cumprir algumas dessas condições, ela poderia ser acompanhada por meio dos serviços de assistência social para entender os motivos do descumprimento e evitar o desligamento punitivo do plano. Por outro lado, Auxílio Brasil parece ser uma versão pior porque ignora a integração das ações de assistência social para promover um certo tipo de visão cívica, e o acompanhamento da família no novo plano parece incerto. Outra novidade do Auxílio Brasil é que os beneficiários que participarem de um curso de educação financeira podem solicitar empréstimos consignado, com descontos diretos sobre os benefícios pagos. Ainda, contudo, há incerteza neste ponto. Não há previsões sobre como, por quem ou onde esses cursos serão oferecidos. Além disso, há outro fator que é menos perceptível, mas que prejudica nossa forma de interpretar a pobreza: um conceito moral de que os pobres vivenciam essa condição material por não saberem administrar o orçamento familiar. A ideia básica é que, enquanto os trabalhadores pobres receberem educação financeira, eles podem se livrar da pobreza, independentemente da conjuntura econômica e política do país na manutenção do quadro atual. Em resumo, no Auxílio Brasil as propostas estão esvaziadas de seu conteúdo e propósito sociais.

Nesse processo, como sociedade, nossa forma de entender os fatores que levam à pobreza não mudou. Estamos progredindo socialmente, mas não discutimos um mecanismo que permite que o desemprego, a pobreza e a fome se desenvolvam no subsolo. O Auxílio Brasil está preso nesta lacuna. O programa não é apenas uma disputa pelo valor do dinheiro repassado às famílias, também promove a destruição do acordo social que existia pelo menos até 2016, que interpretava a pobreza como uma questão política e coletiva. O pano de fundo de empobrecimento populacional, sem dúvida, indica a necessidade de ampliação de políticas sociais como a transferência de renda, mas a forma do Planalto de definir os valores do benefício não parece acompanhada de uma atenção ao desenho do programa. A nova estrutura muda o foco das necessidades e será capaz de pagar mais para as pessoas que menos precisam.

“O que é muito difícil é você vencer a injustiça secular que dilacera o Brasil em dois países distintos: o país dos privilegiados e o país dos despossuídos.” - Ariano Suassuna

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