O vírus que mata minorias: consequências da desigualdade social

A primeira morte de Covid-19 registrada no Brasil foi de uma mulher negra. Cleonice Gonçalves, mulher negra, de 63 anos, empregada doméstica que morreu após ter sido contaminada com o coronavírus pela sua patroa, que tinha viajado à Europa. A desigualdade social já era um empecilho na vida de diversas pessoas ao redor do mundo, todavia,  a pandemia do Covid-19, marcada por retrocessos, refletiu, principalmente, sob as minorias. A herança histórica impossibilitou que todos tivessem o mesmo suporte econômico e social. Assim como as recentes alterações no mercado de trabalho resultaram em índices que anularam as conquistas decorrentes de décadas de reivindicações.

Fazendo parte da estrutura da sociedade, o racismo impactou até os dados de casos da Covid-19. De acordo com a ONG Instituto Polis, entre 01 de março e 31 de julho de 2020, houveram 250 óbitos de homens negros a cada 100 mil habitantes, o grupo mais afetado pela Covid-19. Entre os brancos, são 157 mortes a cada 100 mil. Já entre as mulheres pretas, foram 140 mortes por 100 mil habitantes, contra 85 por 100 mil entre as brancas. Bem como, segundo o IBGE, mulheres, negros e pobres são os mais afetados pela doença. A cada dez pessoas com mais de um sintoma da Covid-19, sete são pretas ou pardas. Um estudo do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, grupo da PUC-Rio, concluiu que, quanto maior a escolaridade, menor a letalidade da Covid-19 nos pacientes. Pessoas sem escolaridade foram 71,3% das mortes, em comparação às pessoas com nível superior, que foram apenas 22,5%. Juntando os dados de escolaridade com raça, a situação piora: pretos e pardos sem escolaridade tiveram 80,35% de taxas de morte, contra 19,65% dos brancos com nível superior. E não foi apenas no Brasil, nos Estados Unidos, de acordo com os dados do APM Research Lab, pretos somaram 50,3% das mortes por 100 mil pessoas, comparado com 20,7% para pessoas brancas. Além disso, no Reino Unido, segundo o Office of National Statistics, homens negros da Inglaterra e de Gales têm três vezes mais chance de morrer por Covid-19 do que homens brancos.

Tais índices alarmantes podem ser explicados pela desigualdade, tanto econômica quanto social. De acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), a população preta apresenta piores indicadores de saúde se comparadas aos brancos. A população preta e de baixa renda está nas regiões mais marginalizadas e periféricas que, em geral, são lugares que têm baixa oferta de serviço de saúde e não tem oferta de saneamento semelhante às zonas residenciais com distribuição de renda maior. Além disso, nesses locais há um maior número de pessoa por metro quadrado, o que facilita a disseminação do vírus. Assim como não puderam realizar isolamento social completo, por precisar sair de casa para trabalhar e conseguir comprar comida para não passar fome, conforme os dados da Pnad Covid-19 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), que demonstram que 28% dos trabalhadores pertencentes à classe A/B puderam mudar o local de trabalho na pandemia, enquanto esse valor não chega a 8% nas classes D e E. A qualidade dessa alimentação também afeta esses índices, pois essa parte da população consome alimentos mais industrializados e baratos, explicando a presença de comorbidades que contribuem para a mortalidade por Covid-19, como hipertensão e diabetes, e afetam pretos e pobres de forma desproporcional.

O estudo desenvolvido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), em parceria com o Pardee Center for International Futures, concluiu que o impacto provocado pela Covid-19 pode elevar o total mundial para mais de 1 bilhão de pessoas na faixa da pobreza extrema até 2030. O que representa 44 milhões de pessoas a mais do que era previsto antes da crise sanitária. No Brasil, o auxílio emergencial reduziu essa disparidade, todavia, independente de todas as medidas fornecidas pelo Estado, de acordo com a Oxfam, os mil maiores bilionários do planeta já conseguiram reaver as perdas em suas finanças, enquanto os mais pobres devem levar, pelo menos, 14 anos. Por isso, é preciso buscar equidade e mudar o cenário cultural e social do país. É fundamental, também, contar com uma saúde acessível e de qualidade, o que nem sempre está disponível para a população negra por causa racismo estrutural. Contudo, enquanto não houver reflexão e reconhecimento do racismo estrutural será impossível fazer mudanças.

A crise gerada pela pandemia da Covid-19, também, afetou o trabalho das mulheres na América Latina, gerando um retrocesso de mais de uma década nos avanços em relação a participação no mercado de trabalho. Em diversos países, a onda de demissões se iniciou pelo setor de serviços, onde há o maior número de mulheres empregadas. Segundo o Relatório Especial Covid-19 N⁰ 9: A autonomia econômica das mulheres na recuperação sustentável e com igualdade, divulgado Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a taxa de participação das mulheres foi de 46% em 2020, enquanto a dos homens foi de 69% (em 2019 foi de 52% e 73,6%, respectivamente). O estudo destaca que antes da pandemia, cerca de 13 milhões de pessoas se dedicavam ao trabalho doméstico remunerado, caracterizado pela precariedade, (das quais 91,5% eram mulheres). No entanto, no segundo trimestre de 2020 os níveis de ocupação no trabalho doméstico remunerado caíram. Outras áreas extremamente feminizadas, como o turismo, no qual 61,5% dos postos de trabalho são ocupados por mulheres, sofreram uma contração enorme. Até mesmo na área da saúde, na qual 70% dos profissionais são mulheres, a diferença salarial média no setor saúde é de 28%, segundo a OMS.

O confinamento sobrecarregou as mulheres de atividades de cuidado não remunerado do lar, em um dia normal, as mulheres gastavam três vezes mais tempo do que homens em tarefas domésticas não remuneradas. Já com a pandemia, a jornada tripla - trabalho, cuidar da casa e dos filhos - tornou-se um trabalho que só para durante o sono. Por isso, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, a pandemia obrigou sete milhões de mulheres a sair do mercado de trabalho ainda em março de 2020. Assim, a injusta divisão sexual das obrigações do lar ameaçam a autonomia e o exercício de direitos das mulheres. Ademais, o isolamento social, no qual algumas mulheres estão presas com seus agressores e afastadas de pessoas e recursos que podem ajudá-las, e a diminuição da presença no mercado de trabalho resultou em um índice maior de violência doméstica. A ONU Mulheres alertou que, com a pandemia, as chamadas para canais telefônicos de ajuda aumentaram cinco vezes em alguns países. Pois, situações de crises econômicas geram situações extremas, que geram violência.

As reformas trabalhista e previdenciária, somadas à crise econômica, também ajudaram a piorar  as relações de trabalho das mulheres. Portanto, é de extrema importância que se reforcem as políticas de emprego e assegurarem às mulheres a participação nos setores da economia em condições de trabalho decente. Da mesma forma que é necessário que o Estado aplique recursos em apoio às mulheres, como a criação de novos programas ou o fortalecimento daqueles já existentes. Para que promova a igualdade de gênero e evite o aprofundamento dos níveis de pobreza entre as mulheres e a sobrecarga de trabalho não remunerado, bem como impeça um grande retrocesso dos direitos já adquiridos.

Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais é o 3º objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, conf. art. 3º da C.F.

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