Violência urbana no Brasil: herança de um sistema escravocrata

No Brasil, a violência é um fenômeno sócio-histórico e estrutural na constituição da sociedade. Além de um instrumento político para manutenção da unidade territorial e da economia escravocrata, a violência no Brasil evoluiu como uma forma de sociabilidade. Esse processo deixou reflexos que, incluídos a fatores como a concentração de renda, levaram ao Brasil ser uma das sociedades mais violentas do mundo e com um alto grau de tolerância a elevadas taxas de assassinatos.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a violência é definida como o “[…] uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou comunidade que possa resultar em ou tenha alta probabilidade de resultar em morte, lesão, dano psicológico, problemas de desenvolvimento ou privação.” A OMS classifica a violência em três divisões. Violência auto infligida, quando é praticada contra si mesmo. Violência interpessoal é contra outra pessoa, podendo ser doméstica ou comunitária, praticada contra conhecidos ou desconhecidos. A violência interpessoal comunitária é a mais comum e pode ser dividida em diversas frentes, a violência política, violência de gênero, violência no trânsito, violência no campo, entre outras. Já a violência coletiva é caracterizada pela dominação social, territorial, política e econômica no nível maior. Quanto à natureza da ação, a OMS classifica em cinco tipos, abuso físico, abuso psicológico, abuso sexual, abandono, negligência e privação de cuidados. Dentro da sociologia, a violência urbana e todos os tipos de violência são um elemento intrínseco a sociedade. O sociólogo Emile Durkheim disse que a violência deve ser avaliada pela perspectiva de fato social, sendo o uso dela derivada da necessidade de poder que os indivíduos de uma realidade possuem. Dentro dessa perspectiva, a violência é a manifestação do conflito de desejos, vontades e exercício de poder entre os sujeitos que vivem uma realidade assimétrica, em que a divisão desse poder é inerentemente desigual.

No Brasil, a violência é um fenômeno histórico que ocorreu em todos os grupos sociais, mesmo após várias mudanças políticas. Durante o período colonial, a família real portuguesa usou da violência para escravizar os povos indígenas e negros, e para manter a centralidade política e a unidade territorial. Durante o período imperial, o uso da violência permaneceu inalterado, e também houve rebeliões por emancipação política. Mesmo com a proclamação da República, a violência ainda serviu como uma ferramenta do estado, especialmente uma ferramenta usada para suprimir os pobres. Durante as ditaduras, a violência também foi utilizada como mecanismo de repressão política, mecanismo esse que não foi totalmente desmontado após a redemocratização, pois algumas práticas foram mantidas e ainda hoje reverberam no aumento da letalidade policial. O Brasil vem numa crescente de violência desde a década de 1970. No ano de 2017 mais de 65 mil pessoas foram assassinadas, sendo o ápice na percentagem de homicídios. Com a criação do Ministério de Segurança Pública em 2018, o número começou a diminuir, uma vez que os dados sobre segurança agora são reunidos em um sistema único de informações e houve uma política de cooperação entre os governos Federal, estadual e municipal. Em relação ao perfil das vítimas, o primordial motivo de morte de jovens do sexo masculino da faixa etária entre 15 e 29 anos é o homicídio. A desigualdade racial também é percebível. Em 2018, 75,7% das vítimas de homicídio foram pretos e pardos. Essa diferença também está presente no assassinato de mulheres, pois, no mesmo ano, 68% das mulheres assassinadas eram negras. A redução do número de homicídios ocorrida entre 2017 e 2018 concentrou-se na população não negra. Outro dado importante é que a maior parte das vítimas de homicídio é composta por homens solteiros e de baixa escolaridade.

Isso significa que, a médio e longo prazo, a estrutura demográfica mudará, pois a expectativa de vida da população brasileira está aumentando, enquanto a taxa de natalidade está diminuindo, e os jovens são o grupo mais afetado pelas mortes violentas. Além do impacto na população, o alto índice de homicídios nessa faixa etária também terá impacto na economia, pois parte considerável da força produtiva do país está morrendo. A violência endêmica gera enormes perdas econômicas, desvalorização de propriedades, prejuízos na produção e comércio de produtos, perda de confiança no ambiente econômico da área afetada. O número de mortes violentas, que chegam a dezenas de milhares, sendo esse o número absoluto igual ou superior ao de países em estado de guerra, sobrecarregam o sistema de saúde pública como uma epidemia. Outra consequência da violência é a perda de liberdade democrática, de expressão, de associação, de ir e vir. A violência urbana é um fenômeno social que tem se espalhado com rapidamente nas cidades. A origem desse problema ode estar na forma como a sociedade está estruturada, quais são seus valores culturais, sociais, morais, padrões econômicos e ideologia política. Vale lembrar que a violência urbana não se limita as grandes cidades, esse problema já apareceu em cidades do interior e pequenos centros urbanos e engana-se quem pensa que esse fenômeno é apenas brasileiro, porque esse comportamento se repete em outros países.

Ao contrário da crença popular, a tentativa de roubo não é uma das principais causas de mortes violentas. Os homicídios estão concentrados em comunidades pobres e têm um impacto maior sobre os pobres. Quando a desigualdade e o racismo se combinam, a situação é ainda mais preocupante. A estigmatização do preto como potencial suspeito faz com que um jovem negro tem 23,5% mais chances de morrer em um homicídio do que um jovem não negro. De cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, cerca de 70 são negras. Outro fator chave para o aumento da violência é o paradoxo da impunidade e da punição. O Brasil tem uma das maiores populações carcerárias do mundo e mais de 40% dos presos não foram a julgamento. No entanto, o encarceramento em massa está relacionado a crimes que não são contra a vida, especialmente crimes relacionados a drogas e roubos. Para o crime de homicídio, a Justiça leva em média 8,6 anos para o tribunal concluir o julgamento. Outrossim, o investimento no departamento de inteligência das polícias, para aumentar da capacidade investigativa, é baixo, o que faz com que mais de 90% dos homicídios não sejam solucionados e punidos. Um grande crescimento de cidadãs em curto espaço de tempo também é acompanhado de aumento da violência. Por exemplo, a cidade Altamira, no Pará, que teve uma explosão populacional por causa da construção da usina de Belo Monte e não teve uma estrutura de serviços da cidade para atender à nova demanda, hoje é a segunda cidade mais violenta do Brasil. A circulação de armas também pode afetar os indicadores de violência. O estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que a cada 1% de aumento na circulação de armas, o número de homicídios no país aumenta 2%. Além disso, as leis que tornam as regras de porte e porte de armas mais flexíveis propiciam que se diminua a rastreabilidade de armas e munições, o que, por sua vez, dificulta o esclarecimento dos homicídios por arma de fogo.

Entretanto, a maior dificuldade está em entender o fenômeno, suas razões, e por que essa opção é utilizada como solução para qualquer situação. Entre as inúmeras razões, existem certas características que afetam a afinidade social e a forma como a sociedade é constituída. Pobreza, racismo, divisão de classes e discriminação de gênero são exemplos de fatores que aumentam a violência. Quando se tem uma sociedade que foi construída sobre esses pilares, na qual há diferenças entre os níveis sociais e ela determina o que cada um desses grupos têm acesso (incluindo segurança), as instituições públicas devem criar meios para garantir a segurança e bem-estar dos que não possui recursos, pois quanto mais pobres e excluídos socialmente, mais vulneráveis essas pessoas ficam à violência urbana. Muitos defendem que a violência e o aumento nas taxas de criminalidade ocorrem apenas pelo enfraquecimento e sucateamento das forças policiares. No entanto, conforme as informações do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a polícia do Brasil é a que mais mata. Além das mortes em conflitos armados, há execuções sumárias e inúmeros casos de violência policial. Esses geralmente ocorrem dentro das periferias e favelas das cidades. É evidente que investir em força policial para fornecer melhores qualidades e trabalho pode ter boas consequências. Porém, não é útil prover essas soluções, caso não haja preparo desses profissionais, para que o Estado não possua mais um mecanismo de coerção por causa da legitimidade do uso da violência, assim como é o caso da polícia. Ademais, é de extrema importância que o combate à violência esteja em união com o incentivo à educação, cultura e lazer, meios de acesso à igualdade social.

A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota. - Jean-Paul Sartre

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